O advogado Daniel Cravo, especialista em "caçar' clubes com direito ao percentual de formação / Crédito: Edison Vara
O que Corinthians, São Paulo, Barcelona de Curicica e Serrano (PB) têm em comum? Todos receberam, recentemente, grana pela formação de jogadores envolvidos em transações milionárias no futebol europeu. Eles se beneficiaram de um mecanismo conhecido no futebol como “solidariedade”: clubes em que os jogadores atuaram entre os 12 e os 23 anos recebem percentuais em negociações posteriores.
O mecanismo virou uma mina de ouro para os clubes — principalmente os menores. O Barcelona de Curicica, bairro vizinho à Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, recebeu 600000 reais na venda de Thiago Silva do Milan para o Paris Saint-Germain. O Serrano, cuja sede fica em uma das sobrelojas de um prédio comercial de Campina Grande (PB), embolsou 715000 reais com a transferência de Hulk do Porto para o Zenit-RUS — a mesma que rendeu 410000 reais para o São Paulo. O Corinthians recebeu 3 milhões de reais com a venda de Willian do Shakhtar Donetsk-UCR para o anzhi Makhachkala-RUS.
A lei, promulgada pelo Comitê Executivo da Fifa em outubro de 2003, prevê fatias na negociação de atletas entre clubes de países diferentes de 0,25% (de 12 a 15 anos) a 0,5% (dos 16 aos 23 anos) para cada ano de formação (leia na página a seguir como funciona o sistema).
Esse dinheiro não viria para esses clubes não fosse uma rede de advogados — e até contadores — montada para monitorar as transferências. São especialistas que estão à caça da grana da “solidariedade”, seja acompanhando sites de transferências de jogadores, consultando pessoas consideradas “fontes de confiança” ou investindo em softwares especializados em rastrear transações entre clubes do exterior.
DOUTOR DA BOLA
Um dos precursores na caça desse subsídio é o advogado Marcos Motta, membro da associação Internacional dos advogados Desportivos. Ele descreve a si mesmo na conta do Twitter que mantém como “advogado da bola”. Quando a caça por esse dinheiro começou, ele costumava usar uma abordagem-padrão ao consultar clubes pelo telefone: “alô, aqui quem fala é o doutor Marcos Motta, representante internacional do Flamengo, que cuidou do caso Ronaldinho com o Paris Saint-Germain. Sabemos que vocês formaram o jogador e têm direito a um crédito”. Em seguida, seu escritório mandava uma espécie de dossiê de algumas páginas sobre como funciona o mecanismo instituído pela Fifa.
“[Hoje] virou uma indústria”, reconhece Motta. a procura, geralmente, parte dos clubes aos advogados mais renomados, por recomendações ou sucesso em trabalhos anteriores. Eduardo Carlezzo, um dos principais nomes do meio, alega que segue recomendações da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para não externar suas táticas. “A captação ocorre no boca a boca, ou entre clubes, quem trabalhou e gostou recomenda“, afirma Luís Felipe Santoro, que presta serviços ao Corinthians, principalmente na formatação de contratos. Ele diz conhecer “colegas que trabalham com percentuais inferiores à média” — estabelecida em 15% pelos escritórios mais conhecidos — para conquistarem os clubes. “Precisamos falar com os clubes com sigilo com relação a algumas transferências. Quando abordamos um clube que não é nosso, nós não falamos o atleta, apenas perguntamos se tem o interesse”, diz Alan Belaciano, envolvido no repasse da solidariedade ao Serrano-PB pela venda de Hulk.
No Brasil, as cobranças começaram com o próprio Motta e Paulo Rogério Amoretty, ex-presidente do Internacional morto em julho de 2007 — ele estava no avião da TAM que bateu em um prédio da companhia em São Paulo. A incumbência dos casos do antigo escritório de Amoretty foi tomada pelo filho, Marcelo. Os rostos no meio, pelo menos dos principais nomes, são conhecidos entre si. “Sabemos quem está na Fifa”, afirma Daniel Cravo, primo de Amoretty e dono de escritório referência no Sul. “E não brigamos com colegas por clientes”, diz Santoro.
O trabalho de um advogado designado para acompanhar possíveis casos do mecanismo engloba desde as pesquisas mais acessíveis, como em sites, até o uso de softwares pagos — como o desenvolvido pelo filho do ex-presidente do Inter Fernando Carvalho, Martin, cuja base de dados contempla a parte contratual e os últimos clubes dos jogadores.
LUPA
Mesmo com o passaporte do atleta, instituído pela CBF para facilitar a localização de onde cada jogador atuou, muitos casos demandam trabalhos minuciosos. O do meia Anderson, hoje no Manchester united, revelado pelo modesto Mont’Serrat, de Porto Alegre, foi conseguido por meio de reconhecimento de campeonatos pela Federação Gaúcha, já que não havia registros específicos. “Eles só tinham registros a partir dos 14 anos. Buscamos registros em ligas e pedimos para a federação certificar os campeonatos à CBF como oficiais”, diz Cravo. Pelas transferências ao Porto e ao united, o clube faturou quase 100000 reais.
O script nem sempre é fiel. Como o caso de Lucas Leiva. A venda do jogador do Grêmio ao Liverpool por 9 milhões de euros em 2007 pouco ajudou o AC Amparo, modesto e desconhecido clube pelo qual o volante passou dos 14 aos 16 anos. Na época sem recursos, o clube apelou para uma parceria com o ex-zagueiro Oscar Bernardi, que ofereceu sua estrutura, recrutou jogadores e utilizou o clube, já inscrito na Federação Paulista, para jogos oficiais. “uma pessoa me trouxe o Lucas e mais cinco garotos, nem sabia que era sobrinho do [ex-jogador] Leivinha”, diz Oscar. Lucas deixou o clube com 16 anos rumo ao Grêmio. Pelo contrato, após sua venda, em 2007, o Amparo, oficial formador por quase três anos, teve direito a 10% da parte cabível ao clube nos até 5% impostos pela solidariedade. Oscar, por contrato, ficou com 90%. “Foi uma parceria lícita. Ele nos ajudou”, diz Roberto Pupo, presidente do Amparo à época. O clube não disputa competições oficiais desde 2010.
Embora tenha ficado três anos vinculado ao Amparo, Lucas, na verdade, era do ex-zagueiro Oscar, que levou 90% do que o clube tinha direito pelo mecanismo de solidariedade / Crédito: Reprodução
O choque de realidade é grande para escritórios menores. Enquanto Motta, Cravo, Amoretty, Carlezzo e Santoro designam poucos membros para cuidar do monitoramento, Belaciano afirma trabalhar com dois pesquisadores e três advogados no que representa “80% do faturamento”. A negociação para que o processo não se estenda e, consequentemente, não vá parar na Fifa ainda vai a um abatimento do valor original e até mesmo parcelamentos.
Os grandes escritórios, no entanto, sentem-se ameaçados pela competitividade — que deixou de estar restrita apenas a eles. Por ser considerada de “complexidade mínima” (“até os departamentos de contabilidades dos clubes podem fazer”, afirma Motta), eles temem que os clubes formadores deixem de procurálos no futuro. “Temo que possa virar um grande balcão de negócios. Mas quem optar por isso vai naufragar”, avalia Marcos Motta.
MECANISMO DOMÉSTICO
Apresentação de Ganso no São Paulo / Crédito: Renato Pizzutto
Em março de 2011, foi incluído na Lei Pelé o chamado mecanismo doméstico, para ressarcir os formadores em transferências nacionais. A venda de Ganso para o São Paulo por 23,9 milhões de reais poderá ajudar Paysandu (que receberá 597000 reais), e Tuna Luso (215000 reais). “O mecanismo já funciona na Escócia”, diz o advogado Marcos Motta. Mas há dúvida sobre como vai funcionar. Luiz Felipe Santoro acredita que o artigo “está engatinhando”. A cobrança de Ganso deverá ser uma das primeiras.
A divisão da grana da negociação de Ganso / Crédito: Reprodução
COMO FUNCIONA O MECANISMO
Solidariedade é a compensação instituída pela Fifa em 2003 para restituir clubes formadores
Thiago Silva se apresenta no PSG / Crédito: Divulgação
Como Thiago Silva foi “fatiado”
41 milhões de euros
Foi o valor pago pelo PSG ao Milan. Essa grana rendeu...
2,05 milhões de euros
pelos 5% de formação
A divisão da grana da negociação de Thiago Silva / Crédito: Reprodução
COMO É O PROCESSO
1 - os clubes iniciam contatos cordiais para tentar o pagamento do mecanismo. Muitas vezes, o formador aceita fazer acordos e receber valores reduzidos para já ter o dinheiro em mãos. O pagamento deve ocorrer até 30 dias após o registro da contratação. Quem comprou tem obrigação de rastrear os formadores.
2 - caso não cumpram com o prazo para o pagamento, o advogado aciona a Fifa pedindo a intervenção da entidade no clube, provando que tentou o acordo amigável. processo pode se arrastar.
3 - se o clube não entrar com o pedido de recebimento em até 18 meses, a contribuição pode ser pedida pela federação do país de onde vem o jogador. O prazo de prescrição, no entanto, é de 24 meses.
Fonte: http://placar.abril.com.br/materia/cacadores-de-solidariedade-advogados-cacam-clubes-formadores